sábado, 20 de março de 2010

Imagem esfacelada

Para qualquer leigo é perceptível que, ao longo do tempo, a imagem do professor tem se transformado e a relação aluno-docente é retratada de diversas formas pelos meios de comunicação. Mas a professora de língua portuguesa dos ensinos fundamental e médio Daniella Barbosa Buttler quis comprovar a teoria a partir de um estudo aprofundado. Em seu doutorado em Linguística Aplicada pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), Daniella desenvolveu a tese A imagem esfacelada do professor - um estudo em textos de revistas e concluiu que a projeção dos professores é tão difusa que inclui questões de gênero, saudosismo e até idealização versus atuais condições para o exercício docente.
"O trabalho teve como proposta refletir acerca da imagem da atividade docente, construída em textos destinados aos professores e ao público em geral, assim como identificar qual discurso algumas revistas difundem sobre e para o professor", explica Daniella.
Dos 400 textos lidos nas revistas, apenas nove crônicas usavam o trabalho do professor como tema, sendo de diferentes autores e épocas, mas todas publicadas sempre em outubro, mês em que se comemora o Dia do Professor.
"Interessante notar que, durante a seleção dos textos, não encontramos crônicas que abordassem o tema de outro profissional. Isso acontece porque a escola e o trabalho docente são muito presentes na vida das pessoas. Todos passaram por um ambiente escolar em alguma época da vida. Por isso os cronistas se sentem à vontade para falar do trabalho do professor", afirma.
Segundo Daniella, as revistas mostraram-se muito voltadas para um modelo romântico do professor ideal. Todos os docentes do passado eram mulheres, remetendo à figura materna. Para a autora, a maioria das crônicas mostra que, por meio do olhar das escritoras das décadas de 30, 40 e 50, pode-se contemplar o que seria a "figura perfeita" do professor em sala de aula. Os profissionais representariam esse professor que consegue dosar, na medida certa, afetividade e competência. Os enunciadores conheceram uma figura "perfeita" e agora buscam perpetuar o modelo romântico de professora ideal que tanto os inspirou.
Um outro conjunto de crônicas mostra que o saudosismo em relação à figura do professor é recorrente. Ela usa como exemplo um discurso da atriz Fernanda Montenegro para o então presidente Fernando Henrique Cardoso, quando homenageada com a Gran-Cruz da Ordem Nacional do Mérito, após receber a Palma de Ouro do Festival de Cannes de melhor atriz pelo filme Central do Brasil. Em um trecho, ela diz: "As primeiras coisas que decorei na minha vida foram dois poemas que Dona Carmosina mandou que decorássemos. [...] Senhor Presidente, precisamos de muitas Carmosinas e, se possível, nenhuma Dora".
Daniella vê na fala indícios desse saudosismo. "Percebe-se que o desejo da atriz é transformar Dora [personagem do filme Central do Brasil] e todas as professoras do presente em Donas Carmosinas porque, segundo ela, as professoras do passado não eram impedidas de agir. A professora do passado mandou e atingiu a eficácia."
Em outro periódico, as crônicas mostram um contraponto: os professores do passado exigiam, portanto eram atores; os do presente se apresentam impotentes para o agir por diversas razões, sendo agentes. "As crônicas têm o debate valorativo entre o aluno do passado e o do presente; o professor do passado e o do presente e as condições de trabalho. O aluno do passado tanto quanto o do presente faz suas reivindicações e também suas recusas. O que há de fato é que, na figura do narrador-aluno que conduz a crônica, temos uma espécie de aluno modelo, que se coloca individualmente. Considero, então, que o que realmente muda é a postura de um aluno no geral, já que ele demonstra muita prepotência e onipotência", explica.
Com relação à mecânica dessas relações no passado, Daniella observou "vozes" de professores que davam ordens e ameaçavam os alunos; de alunos que falavam que o professor não explicava a matéria; pais que pareciam "aterrorizados" com o ponto de vista científico do professor; pais que reclamavam do agir do professor e de outros que incentivavam o seu filho a frequentar a escola. Todavia, todos os conflitos não atingiam o trabalho e a carreira docente.
"Os textos centram-se justamente nessa questão: na construção da representação de uma professora ideal e de seu papel. Apresenta o modelo desse professor, mas não revela os elementos responsáveis para que esse ideal se concretize no processo de ensino-aprendizagem, a não ser o que é da natureza desse professor", afirma Daniella.
Os professores, porém, já não são os mesmos: não existem mais exigências contundentes e muito menos a tentativa de realização dos alunos por meio dos estudos. Nas crônicas fica claro que a aprovação é automática, e o professor é impedido de trabalhar por diferentes razões. Alguns dos indicadores desse mal-estar docente são explicitamente apontados nos textos: a avaliação recorrente dos alunos e pais; o trabalho fora do horário; a preparação; a violência nas instituições escolares; a falta de remuneração adequada.
Daniella avalia que no presente há uma re-configuração negativa. Os verbos estão todos na voz passiva, sem o agente, o que revela que ninguém é responsável pelo tratamento dado ao professor. "O docente é impedido de agir: é impotente, objeto do agir do outro, subordinado à família e aos seus alunos, semelhante ao proletariado. Tem aluno prepotente e onipotente. Todos os conflitos atingem o professor diretamente."
Além disso, a professora diz que é possível perceber, nos enunciados verbais estudados, que a identidade do professor é construída pela mídia na relação língua, imagem, discurso e história, ou seja, a mídia se transforma em suporte de historicidade. Para Daniella, da vida real do professor a mídia mostra apenas o lado negativo. "Assim, o professor passa a fazer parte de uma categoria atacada e responsabilizada pela crise da educação brasileira. O professor é excluído pelo discurso que o desqualifica e o desmoraliza."
Quanto ao título do trabalho, Daniella explica que a imagem de qualquer trabalhador é esfacelada. "Não há uma representação, uma imagem, há várias de um mesmo profissional. Daí a conclusão de que essa imagem é esfacelada pelos múltiplos papéis que o professor desempenha; pelas teorias pedagógicas que mostram a importância do vínculo afetivo com o aluno; a remuneração em descendência; a multiplicação das horas de trabalho; o descontentamento e descrédito da população e das instituições governamentais que culpam os professores; a atividade vista como prestação de serviços; a heterogeneidade na classe dos trabalhadores; o desenvolvimento científico acelerado; o excesso de alunos em sala e a pouca motivação dos alunos", explica.
Opção pelo cotidiano

Em sua tese de doutorado, Daniella Barbosa analisou crônicas publicadas em duas revistas: uma voltada para o público docente e de âmbito nacional e outra distribuída em São Paulo para o público em geral. Na pesquisa foram investigadas as chamadas "re-configurações construídas em textos sobre o trabalho do professor". A autora fez um levantamento sobre as características do agir do professor em situação de trabalho, sobre as quais foram identificadas formas linguístico-discursivas que permitiram detectar essas re-configurações. A crônica foi escolhida por tratar temas do cotidiano e o período de 2000 a 2006 aponta para uma mudança de paradigma do docente, sobretudo porque no início do século XXI ecoavam as orientações dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), que tendo sido lançados na última década do século XX orientaram uma profunda mudança na história da educação brasileira.
Os resultados da análise dos textos da revista voltada para o educador foram divididos em duas partes: as crônicas e os roteiros. As crônicas revelaram um saudosismo em relação ao docente do passado. Já os roteiros de reflexão para professores evidenciaram um locutor que se dirige ao "professor", com verbos no imperativo sem camuflar o caráter prescritivo, e tomando como modelo o professor do passado, sem considerar as condições sócio-históricas.
Na análise dos textos da revista de São Paulo a autora encontrou um contraponto e um confronto entre os professores do passado e os da atualidade: os primeiros exigiam e agiam, enquanto os segundos se apresentam como impotentes para o agir, devido à mudança das relações e papéis entre professor, aluno, pais e direção de escola. "Notamos que as crônicas da primeira revista re-configuram o professor como era em um passado longínquo, em que as condições sociais de trabalho eram diferentes, mas mesmo assim a revista coloca esse professor como sendo o professor ideal para os dias de hoje, o que vemos nos roteiros. Já as crônicas da segunda revista mostram como são os professores da atualidade, com seus múltiplos problemas reais, que fazem oscilar o seu papel tradicional."



Adriana Natali




Nenhum comentário:

Postar um comentário