quarta-feira, 15 de abril de 2009

Entrevista com Fernando Becker

Entrevista
Fernando Becker

As concepções epistemológicas professadas pelos docentes e como elas se refletem em suas práticas é um dos assuntos mais caros atualmente ao professor Fernando Becker.
Orientador de diversos trabalhos de mestrado e doutorado das mais diferentes áreas de conhecimento, incluindo história, física, matemática, português, pedagogia, engenharia, psicologia, arquitetura e artes, o professor da Faculdade de Educação da UFRGS também tem entre suas prioridades traduzir para o meio educacional as concepções de desenvolvimento e aprendizagem da epistemologia genética, de Piaget e da Escola de Genebra, procurando, aqui e ali, promover encontros fecundos com a obra de Paulo Freire, estruturando uma visão pedagógica que contemple basicamente a ação do sujeito enquanto logra êxitos e enquanto se apropria das ações exitosas. É a partir dessa perspectiva e com esse conhecimento de causa que Fernando Becker fala nesta entrevista sobre as contribuições atuais das diferentes abordagens teóricas sobre a aprendizagem e como a ciência tem ajudado a compreender seus processos.
1-Como a ciência tem contribuído para entendermos melhor os processos de aprendizagem dos seres humanos?
As psicologias do século XX trouxeram contribuições substantivas para compreender os processos de aprendizagem dos seres humanos. Na medida em que elas criticaram as velhas explicações, que se centralizavam ou na herança genética ou nos estímulos ambientais, situando o núcleo explicativo na atividade do sujeito, produziram uma grande revolução. Com­preendeu-se que a capacidade humana de conhecer e de aprender não está pronta no recém-nascido, como também não está no meio social ou na cultura. O ser humano não nasce inteligente, ele se torna inteligente. Conforme se apropria do que faz, ele modifica sua capacidade de pensar e, por consequência, sua capacidade de aprender; ele produz não apenas sua consciência, mas a capacidade de produzir a consciência. A mente resulta de intermináveis construções. Talvez nunca se tenha valorizado tanto o fazer e o refletir humanos, pois se passa a atribuir a eles a constituição do próprio sujeito. Nunca se deu tanto valor ao dito, arrojado para a época, do filósofo italiano Giambattista Vico: "A humanidade é obra dela mesma".
2-Quais os grandes avanços científicos que o senhor destaca na compreensão desses processos?
Na segunda metade do século XX, uma ciência que nascera no século XIX começa a mostrar um desenvolvimento surpreendente: a neurologia. A tal ponto que a década de 1990 foi chamada de "a década do cérebro". Entretanto, a primeira década do século XXI tem exibido tantos e tão surpreendentes resultados dessa ciência que, faltando ainda dois anos para encerrá-la, pode-se dizer que esta é mais a década do cérebro do que o foi a de 1990. Já não se pode mais pensar em aprendizagem sem levar em conta as conquistas da neurologia, sobretudo no que concerne às suas descobertas sobre memória. Pari passu com a neurologia, a genética também levanta questões que afetam nossa compreensão da capacidade humana de conhecer e de aprender.
3-Como isso repercute na compreensão dos processos envolvidos na aprendizagem?
A genética pode trazer importantes subsídios para se compreender como um organismo pode processar informações. Mais do que isso, criar conhecimentos novos e, mais ainda, criar a própria capacidade de conhecer. Explicar por que a infância humana é tão demorada quando comparada à dos demais mamíferos superiores. Ou, se compararmos a criança com a vespa, que abate a aranha para servir de alimento a seus filhotes, a genética poderá responder por que a criança tem de aprender tudo, enquanto a vespa sabe, sem aprendizagem, todo o processo que vai da identificação da aranha, passa pela luta com ela, pela anestesia e pelo arrasto da vítima até sua toca para depositar nela seus ovos, embora ela não tenha conhecido outras vespas, nem sequer seus genitores. O bebê humano precisa aprender tudo; até para mamar ele deve aprender vários procedimentos, como coordenar o reflexo de sucção com a respiração. Podemos dizer que o sentido da vida humana consiste em aprender, jamais parar de aprender. Outra ciência que se desenvolveu simultaneamente à neurologia e à genética, tendo contado com um vertiginoso desenvolvimento tecnológico baseado na eletroeletrônica, foi a informática. Hoje, quase não se pode mais falar de aprendizagem sem envolver computadores, chips, memória RAM, rede de computadores, CDs, pendrives, HDs, placa de vídeo, datashow, processadores, salas virtuais, correio eletrônico, EAD, etc.
4-Quais têm sido as contribuições recentes de cada uma das principais linhas teóricas para a compreensão da aprendizagem?
Não sei se alguém se aventuraria a agrupar em linhas teóricas tudo o que está sendo pensado, pesquisado, refletido. Pessoalmente, acho que vivemos muito mais uma Babel do que caminhos bem-delimitados, com horizontes bem-delineados. Com certeza, essa Babel tem muito de positivo, pois várias investigações em andamento rompem com padrões estabelecidos e inventam novos caminhos - como acontece em parte com o cognitivismo que é gerado em um contexto pluridisciplinar. Parecem configurar-se características que Kuhn classificava como indicadoras de uma nova revolução científica; talvez muito mais de uma revolução tecnológica. Por isso, prefiro seguir a metodologia do velho e bom Piaget: olhar o que está acontecendo com a ótica epistemológica. Isso garante, entre outras coisas, um olhar interdisciplinar, tão fundamental para os tempos atuais.
5-Nessa perspectiva, que análise o senhor propõe?
Na consciência clara de que a resposta fica muito aquém do que a pergunta propõe (propõe, de fato, uma tese!), podemos agrupar aqueles que atribuem à pressão ambiental as modificações sofridas pelos organismos, indivíduos ou sujeitos - um neolamarckismo ou lamarckismo contemporâneo. As vantagens de tal postura consistem em prestar atenção às variações manifestadas pelo ambiente sem nunca descuidar do poder de pressão que o meio, tanto físico quanto social, exerce sobre o sujeito. A desvantagem reside na pouca importância que essa posição atribui à atividade do organismo, indivíduo ou sujeito na própria determinação; ela desconsidera a complexidade do genoma. Na posição oposta, encontram-se aqueles que valorizam a tal ponto os caracteres inatos, que os componentes ambientais quase desaparecem. Para os inatistas ou neoinatistas, praticamente tudo, da opção sexual às capacidades de conhecer ou de aprender, é determinado na gestação do novo ser. A desvantagem está ainda no descuido à poderosa interferência do meio, físico ou social, e na desatenção ao poder de determinação da atividade do sujeito sobre a própria evolução. É um neodarwinismo atualizado.
7-Existe uma posição intermediária?
Exatamente. Numa terceira posição, encontram-se aqueles que atribuem a evolução do conhecimento e das aprendizagens às ações dos organismos, indivíduos ou sujeitos. As vantagens resi­dem na atenção permanente à ocorrência de fatores ambientais e genéticos na determinação do desenvolvimento do conhecimento e da aprendizagem do sujeito. A desvantagem é extrínseca e diz respeito à grande complexidade tanto do desenvolvimento quanto da aprendizagem: nada é visto como resultado de uma relação simples de causa e efeito; ao contrário, o meio nunca age diretamente sobre o sujeito, e o sujeito só consegue agir mediatizado pelo meio. Isso configura uma relação dialética em que toda relação sujeito-meio, ativada pela ação do sujeito, desemboca em uma novidade que é sempre resultante da interação sujeito-meio, sujeito-ambiente. Temos, nessa terceira posição, uma superação correlata de lamarckismos e neodarwinismos, de empirismos e inatismos. Acrescento que talvez um dos avanços mais importantes ocorrido nas últimas décadas tenha sido a crítica que o cognitivismo conseguiu fazer à ortodoxia (neo)behaviorista. E um fato a lamentar é a desatenção − às vezes descuido ou até negação − do modelo construtivista-interacionista, que afirma a correlatividade radical do sujeito e do meio, tanto físico quanto social, do organismo e do ambiente, do indivíduo e da sociedade na determinação do processo de desenvolvimento e de aprendizagem humanos.
8-A escola inclusiva é uma tentativa de atender a todas as crianças nas salas de aula regulares. Essa é uma medida viável? O conhecimento científico tem como auxiliar esse processo?
A escola inclusiva age na contramão do que se pensava, isto é, que a criança com dificuldades deveria ser isolada da sociedade, já que para ela não havia chances. As psicologias do século XX propõem que o ser humano cresce à medida que assimila as diferenças e produz respostas próprias a essas diferenças. Sem dúvida, as psicologias, genética e sócio-histórica, estão na ponta dessa proposta. A criança com dificuldades deve, pois, viver com as demais. Mas aqui há outro problema que pode ser assim formulado: tratar diferentemente os diferentes ou as diferenças. A escola tem mostrado dificuldades na implementação desse princípio.
9- O senhor poderia explicar melhor essa questão?A questão é: basta incluir a criança surda em sua turma de aula? Ela estará na turma em condições de igualdade com os demais colegas, sem a presença de um tradutor intérprete de Libras? E a criança cega, de que tratamento ela precisa para garantir as condições de igualdade com as demais crianças? E as portadoras de síndrome de Down, que tratamento diferenciado as igualará em oportunidade às demais? E as crianças que simplesmente não aprendem "não se sabe por que" recebem oportunidades diferenciadas das demais? Como se vê, a escola inclusiva exige, na prática, medidas administrativas nada simples e, via de regra, dispendiosas. Por isso, verificamos uma significativa defasagem entre o discurso da inclusão e a prática da escola inclusiva. Por isso, também a escola inclusiva transformou-se, como costuma acontecer com as modas educacionais, em um discurso generalizado e em uma prática rarefeita.
10-Por que ainda há uma demora tão grande por parte da escola e dos professores para se apropriar das contribuições sobre a aprendizagem?
Existem formas de acelerar essa apropriação?Existem formas, mas não fórmulas de se apropriar, na prática, de uma teoria. Aí reside o problema: uma teoria científica merece, se for digna desse nome, de demorados estudos para sua profunda compreensão. Enquanto não houver tal compreensão, a probabilidade de se cometer, na prática, equívocos palmares é enorme. Como ainda vigora, na maioria dos professores, a ideia de que ensinar é atividade apenas prática, de que estudar teoria é perder tempo, que "na prática, a teoria não funciona", etc., as contribuições científicas continuarão a chegar à escola fragmentadas, malcompreendidas, equivocadamente aplicadas. Do mesmo modo, se continuarmos a confundir teoria científica com modismos, continuaremos a nos reger, pedagógica e didaticamente, pelo senso comum. A escola precisa de formação docente profunda, rigorosa e continuada, a qual supere, na teoria e na prática, a pedagogia da repetição, da reprodução. Uma formação que produza docentes capazes de criar e inventar em conformidade com as demandas dos novos tempos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário