domingo, 29 de novembro de 2009

Pagar pra ver (resultados)

Como equacionar o orçamento a fim de dar conta das novas demandas relativas ao salário dos professores? Esta é uma pergunta que provavelmente está na mente de muitos secretários de educação Brasil afora. Afinal, desde o início deste ano está em vigor o piso salarial do magistério, que cria uma nova referência para a remuneração desses profissionais, num contexto em que se fortalece o discurso de defesa da valorização do magistério como estratégia central para melhorar a qualidade do ensino.
Ou seja, o que está em questão não é somente remunerar melhor os professores, mas fazer isso em meio a um conjunto de ações que permitam elevar a qualidade do ensino - o que, muitas vezes, é compreendido como a melhoria do desempenho do sistema nos indicadores e avaliações oficiais, leia-se Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) e Prova Brasil.
Desse modo, em várias partes do país, os governos municipais e estaduais estão se reorganizando para cumprir a legislação, num movimento de modificação de padrões de remuneração adotados há décadas, no qual, não raramente, o salário básico é mais baixo do que as gratificações e outros benefícios. Ao mesmo tempo, está ganhando força a vinculação da remuneração do docente (e, em alguns casos, de integrantes da equipe técnica da escola) com a melhoria do desempenho dos alunos.
Esse novo modelo já está em funcionamento em estados como Minas Gerais e São Paulo. No primeiro, existe o "Acordo de Resultados", um contrato de gestão que prevê uma premiação anual para servidores estaduais proporcional ao cumprimento dos objetivos e metas. É adotado em várias áreas da administração pública; no caso da educação, são estabelecidas metas para as escolas, as regionais de ensino e o sistema estadual como um todo.
Em São Paulo, o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica do Estado de São Paulo (Idesp) tem estrutura semelhante ao Ideb (mede desempenho + fluxo) e foi criado como referência para medir os avanços das escolas e para o pagamento de um bônus anual à equipe escolar, proporcional ao avanço em relação às metas preestabelecidas.
Outras unidades da federação seguem o mesmo caminho. O Distrito Federal começará a pagar, neste ano, o 14º salário aos professores da rede pública com base em um rol de critérios, entre eles os resultados do Sistema de Avaliação das Instituições Educacionais do Distrito Federal (Siade), que abrange a avaliação do desempenho de estudantes, a avaliação da gestão das escolas e das políticas educacionais.
Municípios também elaboraram políticas nessa direção: é o caso de Anápolis (GO), cidade com 350 mil habitantes, em que o Plano de Carreira e Vencimentos está sendo reestruturado. "Até o momento, não existe nenhuma vinculação entre remuneração docente e desempenho, mas ela está sendo proposta no novo Plano", relata Virginia Melo, secretária municipal de Educação.Segundo ela, predomina entre técnicos da secretaria, membros do Conselho Municipal de Educação e até integrantes do sindicato local a percepção de que a vinculação é necessária para "garantir que a melhor remuneração corresponda a um ensino de melhor qualidade".
Bônus versus qualidade
Embora a tese da vinculação da remuneração (de professores e demais integrantes das equipes escolares) com responsabilização (por meio do estabelecimento de metas) esteja se difundindo ampla e rapidamente no país, não existe um consenso sobre sua validade.
Essa proposta começou a ganhar força a partir de 2007, com o lançamento do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), que tem no Ideb seu principal instrumento para estabelecer metas e definir prioridades - inclusive as relativas à distribuição de recursos aos municípios, estados e escolas.
Os argumentos contrários oscilam da perspectiva trabalhista-sindical à técnica. No primeiro caso, o pagamento de bônus é considerado uma estratégia para "recompor salários defasados", como defende Heleno Araújo, secretário de Assuntos Educacionais da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE).
Entre os pesquisadores, há uma tendência que enfatiza a necessidade de se criar procedimentos que legitimem o estabelecimento de conexões entre os sistemas de informação e avaliação e as consequências para os profissionais da educação, como explica Nigel Brooke, pesquisador do Grupo de Avaliação e Medidas Educacionais, ligado à Faculdade de Educação da UFMG.
Brooke enfatiza que "um sistema que cria ônus para a escola" não deve ser implantado de maneira isolada de "sistemas de apoio e capacitação" para que as escolas saibam interpretar os resultados do diagnóstico e disponham de condições para superar os problemas identificados. Os ônus mencionados por Brooke dizem respeito a?medidas administrativas ou gratificações não recebidas em consequência do não cumprimento de metas. Isso geraria um sentimento de injustiça entre os integrantes da equipe da escola, em especial num contexto em que a burocracia é tida como ineficiente, como ocorre com o serviço público brasileiro.
O professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) Romualdo Portela agrega outros argumentos à crítica: "O que se mede nas provas não é tudo que a escola tem de fazer bem", afirma. Há também, continua o educador, o perigo de se desenvolver uma "cultura de educar para o teste, que é daninha".
"Esses programas se assentam em um pé de barro importante: lembrando Einstein, nem tudo o que se mede é importante, mas nem tudo que é importante se mede", conclui Portela.
Desempenho: a centralidade da escola
Entretanto, o ponto de vista dos gestores é outro. "É verdade que não existe uma relação direta entre melhoria do desempenho dos alunos nas avaliações e remuneração, mas a escola tem o papel de assegurar o bom desempenho", afirma a presidente do Conselho Nacional dos Secretários Estaduais de Educação (Consed), Maria Auxiliadora Seabra Rezende.
É nesse contexto que as políticas de responsabilização se inserem. Mas elas devem ser implantadas de maneira isolada e precisam ser associadas a ações de valorização profissional e de formação.
Embora não exista uma evidência inquestionável de que os bônus ou prêmios produzam (ou reflitam) a melhoria da qualidade do ensino, é possível dizer que existe um consenso quanto à necessidade de se remunerar melhor o professor brasileiro."Um bom salário representa uma condição de profissionalismo, permitindo que o professor viva só de educação e possa se dedicar exclusivamente a uma escola", afirma Juçara Dutra Vieira, vice-presidente da Internacional da Educação, organização mundial com sede em Bruxelas.
Contudo, pondera Juçara, a relação entre salário e qualidade precisa ser analisada ao lado de outros dois componentes, a formação e a carreira. "O salário sozinho não responde totalmente pela qualidade", diz.
Salário ou remuneração
É em tal cenário que o piso salarial, aliado à criação das leis estaduais e municipais do magistério, desponta como instrumento capaz de catalisar um processo de mudança no exercício profissional dos docentes, com eventuais impactos sobre a qualidade de ensino a serem conferidos.
A Lei 11.738, de julho de 2008, estabelece o patamar mínimo de vencimentos a serem pagos aos docentes para a jornada máxima de 40 horas. Há um ano, quando foi aprovada, o valor a ser pago aos profissionais sem formação de nível superior foi fixado em R$ 950. Aplicados os critérios de reajuste para 2009, passou para R$ 1.132,40.
De acordo com a legislação, o piso salarial do magistério deve ser reajustado na mesma proporção que o piso nacional do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb). O aumento do piso do Fundeb foi de 19,2% entre 2008 e 2009.
Os estados e municípios têm prazo até 2010 para pagar o valor integral do piso. Em 2009, é preciso pagar dois terços da diferença entre a remuneração atual e a prevista no piso. Exemplo: um professor que recebe R$ 500 tem direito a um reajuste de R$ 300 em 2009, recebendo um salário de R$ 800 por mês.
A implantação do piso foi motivo de greve de professores em algumas partes do país, como no Ceará, onde os professores da rede estadual cruzaram os braços durante 24 dias. A greve, considerada ilegal pela Justiça, foi suspensa em junho, mas os docentes amea­çam retomar a mobilização no mês de agosto.
Atratividade, meta desejável
A lei aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva considera que, durante 2009, gratificações e outros benefícios podem ser computados para efeito de cálculo do piso salarial. A partir do ano que vem, o piso deverá corresponder ao salário-base.
Esse dispositivo, no entanto, está em suspenso por causa de uma Ação de Inconstitucionalidade (ADI) movida por cinco estados - Mato Grosso do Sul, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Ceará - no Supremo Tribunal Federal (STF). Em resposta à demanda dos governadores foi concedida uma liminar que autoriza, entre outras coisas, a inclusão das gratificações e outras vantagens como parte do piso até o julgamento final da ADI no Supremo - o que ainda não tem previsão para ocorrer.
A liminar agrada a gestores, que alegam dificuldade para obter recursos para cumprir a lei. Ao mesmo tempo, opera uma modificação conceitual importante: o piso deixa de ser o salário-base e ganha a condição de remuneração-base.
Isso é relevante quando se considera que, em várias localidades, as gratificações, bônus e outros benefícios respondem por parcela significativa dos vencimentos - quando não é maior que o salário-base. É o que ocorre, segundo a CNTE, em estados como o Ceará, onde um professor com formação de nível médio recebe, por 40 horas de trabalho, R$ 437,58 de salário, mas tem uma remuneração total de R$ 950.
A secretaria estadual de Educação do Ceará estima que esse artifício tenha beneficiado 2,3 mil docentes cuja remuneração era inferior ao mínimo legal, em um universo de 13,6 mil efetivos e 9 mil temporários. A remuneração média no estado, contudo, é de R$ 2.477,82, pois 80% dos professores na ativa têm licenciatura na área em que atuam e pós-graduação.
"O piso é importante para a recomposição da carreira docente e o Brasil está atrasado nesse processo", analisa Maria Auxiliadora, do Consed. Se os professores não forem bem remunerados, será difícil atrair bons profissionais, dificultando a solução de problemas crônicos, como o déficit docente nas redes públicas, estimado pelo Ministério da Educação (MEC) em 350 mil, alerta ela.
A estimativa é que, a partir de 2010, 45% dos professores da ativa sejam beneficiados pelo piso, considerando que aproximadamente 800 mil deles recebem menos do que o seu valor.
A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, realizada em 2007 pelo IBGE, calculou em R$ 1.369 a remuneração média dos professores no país, valor que inclui todos os profissionais - daqueles em início de carreira com formação de nível médio até os que estão prestes a se aposentar e têm diploma de ensino superior.
"A atratividade da carreira é um dos segredos de sistemas bem-sucedidos", lembra Romualdo Portela, da USP, citando os exemplos da Finlândia, Inglaterra e Cuba. "Isso só se consegue com a valorização econômica e social da profissão." Esta ainda não é, contudo, a realidade do Brasil.

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